October 13, 2020
De parte de A IDEIA Revista De Cultura Libertaria
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Na primeira metade do século XX português, republicanos combateram politicamente monárquicos e sindicalistas-revolucionários; monárquicos fizeram oposição a republicanos; republicanos, anarquistas e comunistas lutaram contra “estado-novistas” (por vezes de armas na mão) – mas (deixando à margem o movimento operário), monárquicos, republicanos e “estado-novistas” tinham duas bases de entendimento consensual entre si: eram patriotas, e eram colonialistas – no duplo sentido de quererem preservar o que restava do império ultramarino para tentar subsistir no mundo moderno das grandes potências, e desejarem contribuir para retirar os povos africanos do estado de subdesenvolvimento em que se encontravam, chamando-os “à civilização”. Nos anos 30, Norton de Matos concedia ao país o tempo de duas gerações para o lograr, findo o qual… ou “novos Brasis” ou… as colónias ser-nos-iam arrebatadas pelos novos gigantes industriais. Não se enganou muito.  

Romanceando: «Nos tempos antigos […] os africanos olhavam para o mar e o que viam era o fim. O mar era uma parede, não uma estrada. Agora, os africanos olham para o mar e veem um trilho aberto aos portugueses, mas interdito para eles. No futuro […] aquele será um mar africano. O caminho a partir do qual os africanos inventarão o futuro.» (José Eduardo Agualusa, A Rainha Ginga, 2014, p. 16) Isto passava-se na costa ocidental e, nesta como logo a seguir na contra-costa, foram os portugueses os primeiros a levar-lhes o céu e o inferno na mesma encomenda, que contudo os trouxe ao século XX.

No último período (democrático) vivido nesta “santa terrinha”, também um largo consenso político tem subsistido entre o PSD, o PS e mesmo o CDS, a despeito da aguda conflitualidade em que muitas vezes se entretêm na disputa da governação do país e das autarquias locais ou regionais: une-os a pertença institucional à União Europeia, à NATO, ao atlantismo anglo-norte-americano, e a vontade de manter viva a comunidade de países de língua oficial portuguesa, com destaque especial para o Brasil e Angola, devido à importância do seu potencial económico e demográfico.

Entretanto, há diversos analistas que detectam sinais fortes da desagregação deste entendimento: uma extrema-esquerda ainda poderosa na sociedade e no ensino que também entrou para o “arco da governação” (não institucionalmente, mas em diversas políticas sectoriais); um Partido Socialista “quase-mexicanizado”; as formações de centro-direita desnorteadas; um “novo populismo” a bater à porta; um Presidente “afectivo” cujo desempenho também ajuda à festa; e mais uma árvore-das-patacas que alguns se aprestam a abanar, para ver o que dali cai… Podemos estar a viver as vésperas de grandes mudanças no país, com as inquestionáveis ajudas que virão de fora. Mas em que sentido?

Em artigo de opinião publicado no Expresso de 8 de Agosto último, escreve o economista e político José António Vieira da Silva: «Com uma crise desta dimensão, podemos seguramente afirmar que foram soltos os célebres cinco demónios de que falava Beveridge no seu histórico mas muito esquecido relatório de 1942, em plena II Guerra Mundial. A doença, a fome, o desconhecimento, a falta de abrigo e a inatividade voltam a ameaçar amplas zonas do planeta e muitos sectores sociais com uma intensidade que julgávamos ultrapassada.» E acrescenta: «As respostas públicas progressistas e democráticas têm de ser urgentes e poderosas. E, provavelmente, muito atentas ao célebre princípio da navalha de Ocham — escolher a resposta mais simples possível quando os problemas são complexos. Regressar ao básico, à resposta das políticas públicas que cresceram e se solidificaram com o New Deal: um forte papel do Estado nas modernas infraestruturas para a economia e o bem-estar, mobilização de recursos para a inovação que melhorarão o rendimento das gerações futuras e são essenciais para garantir sucesso no desafio mais decisivo que a Humanidade alguma vez já enfrentou, o da sua sustentabilidade e do planeta que partilha geração após geração. É por isso que sou dos que, chamando o passado como mestre, sou mais adepto de um novo acordo para a prosperidade partilhada e sustentável do que de um qualquer plano de reconstrução. Muito mais um outro New Deal de que um qualquer Plano Marshall.»

Estas, são palavras de um homem experiente e ponderado que conhece por dentro o que é ser governo, decerto o defende (talvez como “o menor dos males”), mas parece não se sujeitar forçosamente à “razão partidária”.

A Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 de António Costa Silva, um “engenheiro do petróleo” que sabe muito dos países onde ele mais brota, é, como não podia deixar de ser, um instrumento de planeamento soft,mas tecnocrata. Contudo, o seu autor tem boas e cultas inspirações. Quando lemos que «O problema do século XXI é que a criatividade e inovação que a espécie humana tem introduzido ao nível da ciência e da tecnologia não tem tido a mesma influência e escala ao nível da política, da organização da sociedade, da definição das políticas públicas e é crucial neste século existirem mudanças e respostas em todas as esferas, e em especial na política. Como disse há mais de dois séculos atrás o filósofo alemão Kant: “O mundo é governado pela paixão, pela irracionalidade e por males periódicos”. E isso ainda não mudou. É assim hoje como há duzentos anos atrás. Talvez seja a altura de mudar.» (p. 19) – só podemos concordar com a premissa. Contudo, com duas precauções ou condicionantes suplementares: a primeira é a de saber porquê aconteceu assim, ou seja, de conhecer e aprender o fundamental da história destes séculos; a segunda é a de tentar perceber se as orientações agora por ele desenhadas conseguirão efectivamente “transformar a crise em oportunidade”.

Toda a linguagem conceptual de que agora se fala a nível global, lá se encontra, com as convenientes especificidades portuguesas: o esgotamento do modelo energético dominante e a necessária “transição”; o combate às alterações climáticas e a protecção dos oceanos, ao mesmo tempo que uma mais inteligente exploração das suas potencialidades; um melhor aproveitamento das redes por onde o mundo todo hoje se liga (comunicacionais, tecnológicas, de transportes, logísticas, comerciais, interurbanas, energéticas, financeiras, de cadeias de valor, de tráficos também, de intercâmbio científico, de emergência e socorro, etc.), dentro do grande paradigma da conectividade; a evolução para um modelo produtivo de economia digital, da robótica e das biotecnologias; e de novo as vantagens da posição geográfica de Portugal e do Atlântico para o qual está virado, com o melhor aproveitamento económico, científico e de segurança deste mar e «como ponte geopolítica entre a Europa, EUA, Ibero-América, África do Norte, Lusofonia, Atlântico Sul e as Ásias, ponte entre as várias zonas do mundo onde estivemos. Isto implica Portugal explorar na sua política externa o soft power que o país tem e a sua capacidade de agregar vontades e fazer funcionar redes a uma escala pluricontinental. O objetivo aqui é transformar Portugal numa potência média do soft power, ligando a diplomacia, as missões de solidariedade internacional das Forças Armadas Portuguesas, a tecnologia e a necessidade de combater as ameaças globais, para abrir caminho à criação de plataformas colaborativas que podem resolver problemas e abrir novas vias para a cooperação geopolítica e económica.» (p. 29)

Para tal, o autor recomenda completar algumas das infraestruturas que são decisivas para o futuro, investir nos modos de gestão do ciclo da água e das variáveis ambientais, apostar no Estado social e no Serviço Nacional de Saúde, prosseguir na melhoria da qualificação dos cidadãos e numa certa reformulação das cidades, entre muitas outras medidas de concordância fácil ou “politicamente correctas”. Pede, para isso, o mais acertado uso dos recursos financeiros que a União Europeia nos vai providenciar nos próximos anos. Porém, diz pouco sobre a Justiça, o problema da corrupção ou as ameaças populistas-autoritárias (que, obviamente, estão fora da sua área de conhecimento e reflexão).

Mas, mesmo em termos globais, muitas das suas asserções são ainda meras propostas em aberto, perspectivas entrevistas pela ciência que esperam ainda uma concretização tecnológica. Veja-se o caso das fontes energéticas “limpas” para suportar uma “electrificação” crescente da vida social. Ou como minimizar o efeito poluidor do transporte aéreo e de tudo o que “cai” nos oceanos.  

À parte desta sua Visão, em entrevista e referindo-se a Portugal, Costa Silva manifestou-se favorável a uma maior descentralização das decisões públicas mas desconfiado do processo de regionalização em que todos pensam (com assembleias eleitas por sufrágio directo e o aparato administrativo correspondente). Tem razão no que diz; e só é pena a “solução Costa” (dos presidentes das CCDR eleitos pelos municípios respectivos) ser provisória e ter sido logo cozinhada em negociações inter-partidárias entre algumas das forças ali implantadas. O costume…

Porém, estas ideias gerais – interessantes e necessárias –, quase sempre falham por falta de articulação com a realidade: a dos interesses de poderosos grupos privados agindo com discrição; a “negociação política” permanente, à falta de grandes consensos colectivos ou de líderes corajosos e clarividentes; o “peso” dos atrasos acumulados e o engodo das modernizações apressadas; e os “factores externos” sobre os quais nada podemos, referindo-me aqui à nossa pequena escala nacional (demográfica, territorial e de mercado).

Por isso, e olhando para o mundo tal como ele se nos apresenta (incluindo as grandes dúvidas existentes na UE), me parece irrecusável a aposta estratégica num “projecto europeu” – mais virado para o Atlântico e para o mundo do que para o “nosso Leste” –, de resto o único que, federal ou confederalmente, seria capaz de preservar identidades histórico-culturais tão diversas quantos os povos que habitam esses territórios. Mas será possível construir aqui, coexistindo com uma pluralidade de opiniões, um consenso alargado para esta próxima fase de transição tão incerta?

JF / Setembro.2020




Fuente: Aideiablog.wordpress.com