Texto de Elisa Rosas e Raíssa Menezes
As reflexões desse texto foram produzidas por ocasião de nossa participação na mesa “Caminhos da resistência abaixo e à esquerda em tempos de autoritarismo neoliberal” durante o lançamento do livro “Não leve flores – Crônicas etnográficas com o Movimento Passe Livre-DF” de Leila Saraiva.
Desde que iniciamos este portal, afirmamos que nossa proposta é pensar a partir da esquerda, considerando a riqueza e a diversidade das análises políticas das mulheres, que tantas vezes nem sequer são elaboradas, por falta de “espaço interno” diante de tantas coisas que nos consomem, e mesmo quando são elaboradas, poucas vezes são ouvidas nos espaços coletivos.
A quantidade de movimentações que tivemos este ano pelo mundo – como a ola verde: a campanha pela legalização do aborto na Argentina, as lutas das mulheres curdas, o encontro zapatista de mulheres, a resistência feminista contra o fascismo durante as eleições no Brasil – mostram a força daquilo que produzimos como coletivos de mulheres. Sintonizadas às reflexões de nossas companheiras ao redor do globo, em 2018 publicamos materiais sobre:
– a greve dos caminhoneiros, em entrevista com Francine Rebelo e Larissa Riberti;
– as repercussões das manifestações de 2013, com a Camila Jourdan;
– a importância da esperança e da organização social, em textos da Raíssa Menezes e da Leila Saraiva;
– um relato e questionamentos sobre a morte de Marielle Franco, por Luara D.;
– reflexões sobre autodefesa, em uma resenha feita por Bruna Coelho sobre o livro da filósofa francesa Elsa Dorlin
– as mulheres nos projetos de governo dos presidenciáveis, em análises da Elisa Rosas e Camila Maia;
– os lindos retratos de mulheres em movimentos sociais da fotógrafa Luara D.
– uma oficina sobre o Direito à cidade, sistematizada por Raíssa Menezes;
– uma reflexão sobre a situação do feminismo na França, por Isadora Xavier.
Observamos assim, a grande importância da produção de conteúdo sobre as conjunturas atuais, pois muitas vezes na história a voz das mulheres foram conhecidas tardiamente, não raro depois que já morreram. Podemos trazer o exemplo de Anastácia, que se apresentou recentemente em Brasília em um evento em comemoração ao dia do forró. Anastácia não é tão conhecida quanto seu companheiro de composições – Dominguinhos – mas foi ela quem escreveu praticamente todas as letras das músicas gravadas por ele. Sem precisar adentrar nos pormenores desse tipo de relação machista, antigamente tão comum entre os artistas e intelectuais, é tocante e empoderador ver Anastácia em cima do palco cantando suas composições, se apresentando enquanto autora e podendo ter, em vida, pelo menos um pouco do reconhecimento que lhe pertence. Nesse sentido, o Entranhas é um pouco como esse palco, é um portal de produções vivas, como vivas insistimos em estar. Não buscamos o reconhecimento póstumo do patriarcado nem tampouco o reconhecimento de uma produtividade imediatista e lacradora sem reflexões aprofundadas que o capital costuma impor.
A respeito da pergunta de como resistir no próximo ano, temos como certa a importância da auto-organização das mulheres, tendo em vista o peso das manifestações de rua durante a campanha eleitoral, sendo a única pauta que conseguiu unir ideologias e segmentos da sociedade contra o discurso misógino e fascista. Sabemos que mesmo tendo sido o maior movimento em número de pessoas, não foi o suficiente para impedir a eleição de Bolsonaro e tantos outros candidatos de sua linha. Por isso é preciso que repensemos as formas dessa resistência, afinal já não basta ser contra um representante e a favor de outro, menos pior. A exemplo do que vem ocorrendo em outros países, é preciso questionar na rua o modelo de representatividade. Essa é a potência da luta para os próximos anos, já que motivos para insurgências populares não faltarão.
Estejamos sim atentas às pautas que nos dizem respeito e que nos afetam imediatamente nossos corpos, como o aborto, o estupro, a educação sobre gêneros e sexualidades, mas que isso não deixe invisibilizar questões que nos afetam as entranhas, ainda que por outras vias: a precarização do trabalho em pontos que atingem especificamente as mulheres trabalhadoras de todas as idades; a retirada dos benefícios sociais que permitiram algum respiro às chefes de família e alguma dignidade às pessoas em situação de rua; a questão da demarcação de terras e o agravamento das políticas de extermínio dos povos negros e indígenas, que quando não tiram a vida das mulheres tiram a vida de seus filhos ou os afastam da convivência materna – seja quando o Estado reduz a maioridade penal ou leva as crianças para abrigos, como tem acontecido com os Guarani e Kaiwoá. Assim, é preciso lembrar que solidariedade não pode ser apenas um sentimento, mas também uma forma de organização.
Voltando às entranhas, queríamos trazer aqui uma reflexão da socióloga Silvia Rivera, que conta sobre a decapitação que os colonizadores espanhóis promoveram a Inka Atahualpa, em 1532 e a Tupaq Amaru I, em 1571 [1]. Segundo a autora, essas decapitações, mais do que aniquilar a organização social e política dos povos nativos, representam a tentativa do poder colonial de desorganizar quem tentava resistir. Para ela, mais do que uma aniquilação, estas ações deixaram o corpo político boliviano um pouco perdido, desorganizado, desequilibrado.
Isso porque por mais que os assassinatos destes líderes representem um “descabeçamento” daquela organização política, naquele contexto, a cabeça não prevalecia sobre o resto do corpo, como geralmente acreditamos. A cabeça era um complemento do chuyma – das entranhas – e não quem direcionava o pensamento. Aqui nos identificamos, tanto na dificuldade de se organizar, neste nosso corpo político precário, quanto na vivência política visceral, profunda e não somente de uma suposta racionalidade mental europeia.
É pela prática descentralizadora que queremos seguir. Isso se reflete quando optamos por usar diversos tipos de linguagens: a fotografia, a análise, a resenha, a ilustração, a entrevista, o desenho. Contamos ainda com contribuições geralmente invisíveis de edição, revisão, tradução, divulgação e manutenção da página, feito pelo coletivo cotidianamente. Ainda entre os desafios para 2019 estão o de contarmos com trabalhos de outros perfis de mulheres e suas linguagens, pensando aqui em uma diversidade geracional, étnica e de gêneros. Neste sentido, continuamos a convidar as mulheres a compartilharem suas palavras, a botar as tripas para fora e a desentranhar o mundo, a partir das nossas ações e das nossas elaborações feministas, abaixo e à esquerda.
[1] Rivera Cusicanqui, Silvia. Ch’ixinakax utxiwa : una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores – 1a ed. – Buenos Aires : Tinta Limón, 2010.
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Fuente: Entranhas.org